sábado, 19 de fevereiro de 2011

KARI’OCA

         Carioca:[do tupi kari’oca, “casa do branco”]
            1. de ou pertencente ou relativo à cidade do Rio de Janeiro.
            2. diz-se do café já preparado ao qual se adiciona água.
            3. diz-se de uma raça de porcos domésticos brasileiros.
            4. Natural ou habitante da cidade do Rio de Janeiro
                                        
 Parte I : definições


“café que leva água
depois de pronto”
deve ficar uma droga.
Coisa de fluminense,
não de carioca.
“Raça de porcos domésticos”
não somos também,
se bem que no verão vivamos o drama
do medo das chuvas,e da lama,
que desce com pedras e balas, dos morros,
entrando nas casas,toneladas,aos jorros
sujando ou destruindo vidas
manchando, dos prefeitos(tão “perfeitos”),
as reputações.
“Casa (só) de branco”
carioca também não pode ser.
Rio, terra de todos os tipos e nomes
de madrugadores e de insones;
cidade
onde ninguém mais cabe
e quase ninguém mais sabe
como viver.

                             


 Parte II: Nova Canção do Exílio

Nós, os exilados,
cariocas expatriados
pela pobreza espiritual,
pela penúria material,
pelo medo das balas perdidas,
contentamo-nos em aceitar
este afastamento desgostoso
recordando de longe Botafogo,
Bonsucesso,Ramos e Olaria,
a Pedra da Gávea e a  trilha
que começa (ou começava ?)na rua Iposeira.
Hoje sinto-me nostálgico(besteira)
do Campo de São Cristóvão
das brigas do “sangue e areia”
ao lado do velho Pavilhão
onde mini homens com azuis gravatas
resolviam diferenças,rolando no chão imundo
em justas heróicas,formidáveis contendas
nas barbas do Pedro II.
De longe nos contemplava com insistência
os muros do colégio,altaneiros,
protetores de nossa adolescência.
Éramos como irmãos,companheiros.
Naqueles dias românticos
punhos em riste,excitados,
nao supúnhamos sequer,
ser alijados p’routro lugar qualquer
pela miséria  progressiva
ou pela força coercitiva 
de fuzis AR-15.
15 pra nós,só a Praça,
onde íamos a museus de graça
e pegávamos,emocionados,a barca
pra passear até aquela distante cidade,
do outro lado da baía.
A vida desse carioca
nisso se resumia:
perambular pelas casas dos amigos
ou assistir palestras esotéricas
para depois fazer considerações as mais etéreas
acompanhadas de goles de chocolate.
Depois ,com mais idade,
já perto do desquite e da maturidade
vieram as palavras de Platão
que me salvaram da loucura iminente
e delirei feliz,pela primeira vez depois de anos
especulando em grupo sobre assuntos pertinentes,
nas salas da “Largo-de-São-Franciscana”
ACADEMIA
ou numa saleta de psicoterapia
escondida nas ruas da Tijuca.
A vida era muito mais bela
quando liberto,
eventualmente,
de uma rotina amarela,
vagava,
distraído,
pela calçada da Carioca (a Rua)
me deixando embebedar pela tarde
ociosa e nua
me perdendo no fundo de um sebo poeirento.
Talvez daí venha a definição dicionaresca:
“porcos domésticos”.
Deve ser a versão pitoresca,
agora entendo,
da antiga expressão “ratos de biblioteca”
que longe de ofensiva,é elogiosa,
coerente com o que concebo do ser carioca.

Parte III: Reflexões médico-sociais

Passei anos,sete deles,trabalhando nos subúrbios
tratando da dor e dos distúrbios
de corpos e corações.
Não vi nesta terra filosófica
de praias e cartões postais
imagens cotidianas de alegria
de festa ininteruupta ou carnavais.
Vi doença, pobreza ,violência,
trabalho,muito trabalho,insatisfação,
as pessoas acordando muito cedo
se espremendo,por horas, num lotação.
Alegria por ser carioca,
em lá vivendo, se ainda existe, é íntima-
as coisas em volta  não tem mais graça,
a não ser aquela que o próprio ser determina.
Sei lá de onde,o bom humor persiste
no meio dessa guerra civil não declarada
como se o último bastião de resistência
fosse uma sonora e desavergonhada gargalhada.

O carioca,sabe Deus como,ainda consegue rir
de quaisquer coisas que lhe caiam na frente;
faz piadas as mais comezinhas
mesmo cansado,assustado,doente.
Este rir,no entanto,pouco a pouco se desfaz
o que era divertimento e alegria
hoje é o sarcasmo,o mordaz.
Tanta dor e medo e luta
transforma em cínico o mais inocente
como carioca,olhando de longe,
o que vejo é uma cidade doente.
Ou adoecida, por forças as mais claras
que por ódio ao prazer e alegria deste povo,quase eternos,
transformaram um paradisíaco balneário neste inferno.

 Parte IV:Epílogo

Aqui isolado,nesse “paraíso” paulista
num frio europeu, a 800m de altura
eu, daimon-desterrado e poeta
relembro sem saudade aquela loucura.

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