domingo, 27 de fevereiro de 2011

FEITIÇO


Nunca vi amor tão belo
como este do céu e da areia
que se buscam todo o tempo
nas imensidões do infinito .
Azul que beija amarelo
imensidão que abraça o que rasteja
a água como testemunha do evento ,
abençoando encontro tão sofrido .
dor de quem sendo eterno
se encanta de algo frágil como teia ,
e mesmo tendo tanto sentimento
jamais toca o que acha tão bonito .

Paixão do sem fim pelo finito.

GOTAS

Uma pedra , no oceano  mergulha .
Rápidas , saltam as gotas  em fúria ,
na ilusão da autonomia .
Descrevem alegres , no ar , um arco ,
fugaz , no tempo e no espaço ,
e retornam  para a água fria ,
encerrando suas aventuras toscas.
Deus cria atirando pedras ;
nós , somos as gotas .

DÚVIDA



Repousa o misterioso pote ,
silente ,ao fim do arco solar ,
a luz a desenhar matizes ,
que nele vão mergulhar.
Pergunto-me: a luz ou o ouro —
qual será o verdadeiro tesouro?

DESCANSO



Ambos repousam  com tranqüilidade
cheios de indiferença sagrada
o deus em pedra, ela na mata,
com semelhança inusitada,
séculos entre um e outro gesto
centímetros entre as pernas esticadas .
Deus e deusa em consonância
no ócio quieto , embevecido:
ela contemplando seu reflexo ;
ele ,suavemente adormecido .
Solene eu chamaria seu repouso
tamanha a elegância ,dele e dela ,
o cinzel rivalizando com o pincel
a rocha tão suave quanto a tela .


CHUVA

água que rola tépida
em meu âmago
(líquido desânimo)
preguiçoso ao escorrer:
chuva do dia , da tarde;
chuva do anoitecer.

CAÇADA

A minha vida inteira me espreita
nessa tela muda e loquaz .
Não há silêncio igual , ou paz .
O branco da tela me reflete .
Desapareceram idéias
tormentos .
Sem pensamentos ,
dedos soltos no teclado ,
exercito ,
lacanianamente ,
a arte de escrever sem rumo .
Existe em mim uma sombra :
será a lembrança da minha hesitação mais recente ?
Será que percebo algo externo a mim ?
Minha intuição não me esclarece .
Permaneço aqui ,
diante de mim mesmo ,
observando-me ,
aguardando para surpreender-me
num momento de descuido .
A idéia surgirá assim ,
logo que eu ,
distraído ,
me afastar do objetivo
de consegui-la .
A presa que mais corre de nós
é aquela perseguida .
Os pianos tem metrônomos ;
eu , tenho meu relógio ,
a minha direita ,
rítmico , enquanto busco ,
nesta muitas letras ,
uma imagem ,
um insight ,
uma marca ,
qualquer coisa ,
para expressar esta manhã de domingo quieta ,
entorpecida ,
esse escritório calmo ,
onde  a poesia não comparece
agora
por pudor ou vontade .




Existe uma discussão aqui :
eu ,
o que desejo ,
o que é ,
dialogamos .
Eterno triângulo.
Esperamos
todos
pela mais cobiçada das presas .

E longe daqui ,
distraída ,
a beleza ,
quase adormecida ,
repousa na grama fresca do mistério .

BELEZA


Contemplo-a, absorto ,
o ato de descrever congelado,
morto ,
pelo deslumbre paralisado;
Eu, décadas depois,
por um quadro apaixonado.


ATOS DE AMOR

A tinta beija o papel
com sensualidade líquida;
a folha, de idéias incendiada ,
absorve, lívida,
suas marcas.
São atos de amor os textos,
as cartas.

APENAS COM A PENA

Em seu estúdio ,
em silêncio recolhido,
executa o poeta decidido seu ofício
retratando , apenas com a pena ,
a humana contenda ,
quotidiana cena ,
que desfila ante seus olhos , com todas as cores.
Registra  humores ,
temores,
amores.
Trabalha palavras ,frases,
letras , vírgulas ,crases ,
que se desenham solenes
por folhas indolentes .
Depois , de modo persistente ,
organiza idéias ,
elabora o texto e sente ,
ao relê-lo , vezes sem conta
se ele mostra ,insinua ou pelo menos aponta
em direção a meta inicial.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

VIDAS

Não tenho lembranças:
formas ou nomes.
Vasculho-me , às vezes insone ,
em busca de traços , contornos .
Múltiplos - meus rostos,
meus corpos , tantos,
confundem-se , estranhos
uns aos outros,
e a este último.
Indago-me , persistente :
quem sou ou fui?  Onde?
e no silêncio que se segue , envolvente
por misericórdia , ninguém responde.

TUDO BEM

Tua lua é clara
por isso caminho na tua noite sem medo ;
teu rio tem águas limpas
e a correnteza não é forte
por isso mergulho em ti sem nenhuma proteção
e
quando tua tempestade desaba
só diminui o calor incômodo
e a chuva intensa
refrigera e refresca;
e se às vezes,
estando ao meu lado,
te quero comigo e estás longe , além,
reflito sobre tudo , penso no meu passado
e concluo : tudo bem .

SOMOS HOMENS

para SOREN KIEKEGAARD



Não tenhamos culpa
pelas pulsações de nosso coração
nem pelas gotas de suor em nossos poros
nem pelo sangue em nossos vasos.
Não temos outra vocação
senão para a convivência.
Somos os fabricantes solitários
de nosso mental,
desde Sófocles totalmente responsáveis
por nós mesmos.
Não somos mornos,
plácidos ou estáticos :
somos homens.

(por que nos preocupa tanto
a existência de Deus,
senão para incutir-lhe a culpa,
de assuntos que não são seus?)

Somos o que somos.
reconheçamos,
e, com mais dignidade,
vivamos.

SER OBJETO


Poliédricos seres,
multidimensionados,
muitas faces facetas,
frestas ,  gretas,
vários lados,

estranhos,
indefinidos,
bizarros,
indelevelmente marcados
por complexa composição.



Mais lutamos, de um lado, pelo bem
mais o outro mergulha em perdição.

RETRATO


Tu me olhas imóvel
em um quadro de parede
solene , intocável,
sem a densidade amiga do toque .

Tua boca fechada , silente ,
permanece indecisa entre
a inexpressividade e o sorriso :
leonardiano sorriso.


Mentalmente parafraseio outro artista:
"Este NÃO É' o mestre."

Teu quadro é um teste
e eu me pergunto :
para que tantas palavras?

RESUMO

Habena[1]  rápida
que corta e controla
lindando[2] trechos de liberdade e ação :
paixão.






[1] HABENA: Rédea ,açoite , chicote
[2] LINDAR : demarcar , delimitar , confinar ,limitar

RECOMENDAÇÕES

Uma poesia
Que a si mesma se basta
Deve ser forte
Marcada
Rítmica
Clara
Cadenciada

E sob qualquer perspectiva
Antes de tudo
Deve ser bonita.

POESIA

Desvios.
Traços esguios,
linhas , curvas
oscilações,
contornos e retas das emoções
que viram texto
no papel.

PARVA-SHAKTI

para "Afrodite"

Teu movimento sóbrio e lento
me enganou e seduziu.
Sedento
engajei-me no cortejo de Dionísio
transformei-me no arquétipo de Pã
deitado no divã
junguianamente
já que não em mim , mas a minha volta
um coletivo inconsciente
não me socorreu,
indiferente.

ONDAS

O
scilações internas nos afligem
demarcam extensões e intenções
seguem , inexoráveis
as veias do construído
do cotidiano assistido
vivenciado
permanente mutação de estado

desdita
êxtase
descoberta
retorno ao principio
desconhecido .