sábado, 19 de fevereiro de 2011

MEDITAÇÕES MATINAIS



(Implicações filosóficas de um café da manhã e dos postes cinzas)



Passeiam as necessidades ,imunes e impunes.
Vagam os momentos,
estes discretos e fugidios animais,
velozes como gazelas,
desafiando-nos a capturá-los.
E ,apenas observando-os,
desprezamos sua existência.
Como poderia um ser como o homem
atentar aos movimentos dos irracionais?

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Os ovos estalam.
Uma faísca me atinge.
O óleo quente não me faz espécie.
Há um quê de dormência
em meus sentidos.

E as imagens desfilam.

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Agora é a vez dos uivos e ganidos
diurnos.
E em cima de um monte de lixo
em um depósito,
um homem uiva ao sol
como o cão de Zaratustra.

Não há peixes .
O rio é cinza - avermelhado
e nele bóiam excrementos.
Um garoto,
do outro lado,
me observa.
Olha o rio,
as fezes,
olha para mim,
pros lados,
pro céu,
pro chão,
como a procurar razões
pelas quais não precise se enfadar
de tanta e tão monótona igualdade.

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Na mesa jaz uma xícara de café
sem epitáfio.
A fumaça sobe,
metódica,
muito metódica.
Eu observo
e penso...

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“Ainda há os pássaros negros a considerar.”
Quais pássaros negros?
Ora,
espanta-me que não tenham sido vistos.
São tão negros!
E tão grandes...
E parecem tão leves no ar,
deslizando,
flutuando
ao sabor dos gases.
Não são águias nem abutres,
mais parecem híbridos
de nobreza maquiavélica,
sinistra e gentil.
Lá está um em mergulho.
Rápido,
lívido,
asas falciformes,
falcípede,
falconideamente em busca de executivos.

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Justaposto à manteiga
jaz um pedaço de pão,
também sem epitáfio ou cova,
tão idiota e morto
quanto a mesa.

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Morte...
A vida é quente,
úmida e quente.
A morte é fria,
seca e fria.
— tão seca e fria quanto os postes das ruas mortas,
tão mortos e úteis aos fios e aos cães.
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No ônibus há movimento.
A rua torna-se estranhamente viva
de dentro de um ônibus rápido.
E os postes mortos
e úteis aos fios ,
passando rápidos,
trazem-me idéias.
A ciência fala
de um movimento especial,
sutis bailados intra-atômicos,
que só por serem pequeninos
são “desprezíveis”.
(as crianças são pequeninas também...)
Mas eu só raciocinava
sobre grandes movimentos,
como o do ônibus
e o da rua dos postes mortos
e úteis-aos-fios-úteis-aos-pássaros-e-aos-telefones.
ônibus rápido e litorâneo aquele.
O vento no rosto chegava depressa
e resfriava a pele
e feria os olhos
e trazia os postes...
novamente ,os postes...

Era noite.
E eu pensava
nos postes-úteis-aos-cães-e-aos-fios-úteis-aos-pássaros-e-aos-telefones-úteis-às-intrigas.
...postes rápidos...


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a faca despeja  a manteiga
no pão
cadavericamente cinza...
(os postes são cinzas...)

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Durante a noite
não se pode ver os pássaros negros...
não se pode,
palavra que não.

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...e a máquina rugia
qual dragão enfurecido,
talvez zangada
por ter tantas parasitas às suas costas.
Embora evidentemente revoltada,
não deixava de servir
ao objetivo para o qual fora criada.
Os ônibus
são muito compreensivos...
Tão compreensivos quantos os telefones públicos,
vermelhos-hemorragia,
talvez de tanto que apanhem,
mas sempre lá.
Tal qual os ônibus,
tal qual os postes.

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Mas eu pensava no movimento.
Não na inércia mental
dos telefones que apanham
e dos homens que batem,
batem 
e batem.
Aquilo é que era movimento.

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Os postes são cinza.
O cérebro é cinza.
Poderá residir
na analogia cromática entre os dois
a verdadeira causa da dor do mundo?
Pois,
se um se move apenas
intra-atomicamente,
o outro
dá claras demonstrações
de estar no mesmo caminho.
Postes não pensam.
Homens modernos também não.

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O movimento oculto
na noite dos pássaros negros
e dos postes  cinzas
continuava...
Eu,
vento no rosto,
cabeça na janela,
na janela rápida do resignado ônibus,
pensava.


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De tanto pensar no que pensava,
queimei o pão cinza.
Na boca ,
no entanto,
a saliva executa seu trabalho.
(Triste destino o do trigo.Muito triste.)


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Pensei nos postes rápidos
como se fossem os dedos da Terra,
todos empertigados,
graníticos,
apontando para o céu.
Quem sabe,
um gesto desesperado da terra muda,
para avisar sobre os pássaros negros
e híbridos,
caçadores de sacerdotes e executivos.

Mas ninguém presta atenção.
Nos resignados ônibus,
um amontoado de corpos roçantes
se movimenta,
desprezando os numerosos indicadores
da Mãe Silenciosa.

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Há duas espécies de raciocínio:
o dos ônibus resignados e furiosos
e o dos postes aparentemente estáticos.
Há dois tipos de café com leite:
os cafés - com - leite quentes
e os cafés - com - leite frios.
No entanto todo café com leite é de cor quase cinza,
quente ou frio.
Há finalmente  duas espécies de homens:
os homens resignados-furiosos-cinza-frios
e os homens aparentemente-estáticos-cinza-quentes.
Os primeiros(resignados-furiosos-cinza-frios)
por suas vez,
podem ser:
uivantes
e não uivantes.

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Mas isso passa .
Há sempre um ponto final
onde param os postes
e os ônibus
e só os homens parecem se mover.

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Meu Deus!
Preciso de facas novas
para cortar meus pães antigos.
(Detesto manteiga derretida!
De nada adiantam as facas novas
quando sob o calor intenso,
ou melhor,
à temperatura ambiente,
surgem as inúteis manteigas derretidas.)
Abro a geladeira e pego a margarina
fria e dura.
Para se tomar um bom café-com-leite,
quase cinza e quente,
mesmo com pão velho,
precisamos primeiro de facas novas,
depois de manteiga derretível
e não derretida.
São tão poucas as boas facas
hoje em dia!
(Tão poucas como os homens-postes,
que apontem para o alto,
que indiquem aos menos sensíveis
que os pássaros negros,
grandes e sutis,
andam pairando,
suaves  e onipotentes,
sobre nossas cabeças,
caçando executivos,
sacerdotes
e seres resignados-furiosos-cinza-frios.)
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Quanto tempo, ainda,
passearão as necessidades,
imunes e impunes?
Quanto tempo, ainda,
teremos de esperar
por facas novas
para cortar pães cinzentos e velhos?
Por quantas gerações ,ainda,
agüentaremos os golpes contra os nossos íntimos,
tão avermelhados e hemorrágicos
quanto os telefones?
Cinza são os postes
e as nuvens de um dia de chuva.
Negros são os pensamentos dos homens,
como pães que queimam
em frigideiras negligencidadas ao fogo.
E que importa
que a Natureza tente
inutilmente
avisar os que se movimentam
da existência de um Pai-Silencioso
Senhor da Mãe-Silenciosa
e dos postes-cinzas-úteis-aos-cães-e-aos-fios-úteis-aos-pássaros-e-aos-telefones-úteis-às-fofocas-e-aos-distantes.?
Pai-Silencioso,
Senhor dos dedos-cinza da Mãe-Silenciosa,
que já não está tão sem movimento
quanto as falanges cinza do asfalto.
Pai-Silencioso-que-se-movimenta...
silêncio-que-se-movimenta...
Movimento.
E por desprezarem os avisos dos postes,
dos telefones vermelhos-hemorragia,
ainda haverá muitos homens
em cima dos montes
do Grande Depósito de Lixo.


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o café-com-leite é quase cinza como os dedos de cimento...

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Passeiam as necessidades ,
imunes e impunes,
vagam os momentos ,
estes discretos e fugidios animais,
velozes como gazelas...
Agora é a hora
de muitos uivos
e muitos ganidos ao Sol.
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“- Nossa!
Sete e meia!
E eu ainda nem escovei os dentes!”


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Abro a torneira
com um gesto brusco.
A pasta é branca
e a escova fere a gengiva.
(Fere , mas limpa ,
garante o fabricante.)
Consola-me o fato
de minhas cáries
serem em menor número
que as cáries do mundo.
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Mundo de postes,
mundo de cinza,
mundo de híbridas e negras aves
que caçam sacerdotes,
executivos
e seres-resignados-furiosos-cinza-frios.

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A água do lavatório é fria.
A manhã é fria .
( Fria é a alma da humanidade.)
A escova fere os dentes.
(Ferem também os homens,
mas homens não limpam
quando ferem.)

Há muito trabalho para um sanitarista
na terra do macaco nu
Pois ainda passeiam as necessidades,
imunes,
e impunes;
ainda passeiam os homens,
por enquanto impunes,
mas não imunes,
a despeito de todos os excrementos
e postes cinzas do mundo.

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