sábado, 19 de fevereiro de 2011

POEMA DA NOITE



                   I Movimento ( Overture )

Não há na Noite motivos especiais.
Não há.
Ela é o único tema ,o único motivo.
Eu me introduzo em seu aconchego;
ela me recebe ,todo.
A Noite me ama por inteiro
como nenhuma mulher poderia.
Me traga e digere devagar;
eu me deixo por seu intestino deslizar
até o sol chegar.
Enquanto êle não vem,
faminta, ela me devora.
A Noite é uma mulher gulosa e  me comprazo
até o sol chegar , em ser seu repasto.
Alimento-me de ser o pão da Noite.
A Noite precisa de humanos subsídios
para continuar a ser Noite,
a ser Musa.
A Noite quer os corpos na cama
a cultuá-la com carinhos e drama
tanto quanto os poetas.
A Noite quer paixão ,suor,
beijos ,os mais numerosos,
os mais ardorosos.


Repouso no cansaço ,festa dos odores,
dimensão dos movimentos ocultos.
A Noite acolhe muitos amores.
Quantas Noites dura um único amor?


                  


(Quem é esta mulher de hábitos tão noturnos?
De quem são estas pernas noturnas
que aquecem minhas pernas?
De quem são esses seios tão noturnos
Que encaixam tão bem em minhas mãos?
Sei lá.
Só quero que o Sol se retarde.)

        
        
                                      II  Movimento( Allegro)

Tua fragância é inebriante
como o vinho de um bacante
Não falas nada
e eu também nada te pergunto.
De quem são estas mãos nos meus cabelos
que me fazem carinhos tão bons?
E estes lábios ,tão quentes...
Esse hálito morno a me aquecer a face
é ,absolutamente,
fundamental em Noites frias como esta.
A Noite e as paredes por testemunhas
de quanto este corpo teu me faz bem
o quanto me é vital.

Essa Deusa pagã ,que transforma minha cama
em um templo
onde se cultua através de orgasmos lunares
onde se reza com as mãos postas ,
dispostas ,repostas,
tantas mãos, tanta pele,
quanto a Deusa possa administrar .

Essa Deusa é tão felina
essa Noite tão feminina
e essa mulher ,tão linda
me sorvendo ,devagar.

(Quantas Deusas me amarão
até morrer a solidão
nessas Noites de inverno,
nessas Noites de verão?)

Ah! Que doce Deusa mista
tão maldosa ,tão insonte,
tão minha, múltipla, mística,
me fazendo assim , insone.

Deusa Noite encarnaste
no corpo desta mulher que me possui.
Neste êxtase noturno,
não tenho pátria,
família,
nome.

E essa Aurora ameaçadora
na janela a me preocupar!
Vai fecha a cortina,
essa Noite ainda não pode acabar!

                            III Movimento (Allegro ma non troppo)

No Ocaso Inicia Toda Escuridão
Toda Santa Danação
toda paixão.

No Ocaso Inicia Todo Escarcéu
todo inferno
todo céu.


No Ocaso Inicia Toda Erosão
toda Luta
toda Rusga.

No Ocaso Inicia Toda Elegia
toda saudade
toda agonia.

No Ocaso Inicia Todo Erotismo
Pois não há nada mais erótico que fim de Dia
quando o Sol se deita e penetra a Noite.

No Ocaso Inicia Toda Exalação
todo perfume
todo odor.

No Ocaso Inicia Todo Embate
toda dor
tanto Amor,

que às vêzes transborda
pelas bordas da manhã
e cai na tarde , lá embaixo;
às vêzes com tanta força cai
que certas tardes são mais  Noites que tardes
e quando chega a Noite mesmo
o Amor já está velho
e o sexo já foi canonizado.


                            IV Movimento(Andante)

Sofisticado silêncio,
este silêncio da Noite
que evidencia tonalidades
antes sem qualquer competitividade.
Um estalar de assoalho
ou dos móveis
repercute na imaginação,
fomenta o mito ,a invenção.

Ao ficar em casa muito grande
à Noite,
o mais ateu e agnóstico dos seres
aceita as almas penadas
e passa a ter os fantasmas
como realidades indiscutíveis.

Tudo ,à Noite ,ganha vida:
as dobras de uma porta,
a porta mesmo,
o relógio;
tudo fica indócil,
menos passivo,
menos objeto.

É justo que enquanto dorme o homem,
o mundo desperte , esperto.



                            V Movimento (Alegretto)

A poesia é extensão
do calor e da emoção
das Noites deste hemisfério.
Abaixo do equador
os seres são mais românticos
e o real perde pro etéreo.

Poucas são as rimas possíveis
em terras de sentimentos invisíveis.

Abaixo do equador
todos comem sentimentos.
Basta olhar pro café ,na xícara,
pra entender que a Noite quente ,de manhã ,é bebida.


                            VI Movimento (Adagio)

Nessa noite toda a humanidade dorme:
noite de Dia,
noite de Noite;
só noite.
Mas a humanidade ronca,
desmaiou de cansaço.
Essa noite de tão escura
chega a brilhar.
De tão preta ,ofusca,
mas a Humanidade dorme:
seus olhos cerrados para a Noite
para tudo,
não podem ser atraídos
ou estimulados.

Nada mais consegue excitar este homem acolchoado
protegido
aquecido
agredido
esquecido
esquisito
espremido
esmagado
obrigado.

Ai que noite terrível
desabou sobre nós
e nada,
absolutamente nada,
tem a ver com a minha Noite,
tão doce,
que me observa
enquanto escrevo.


                            VII Movimento(Prestíssimo)

Ah essa Noite, que pena,
é mais bela que esse poema.



                            VIII Movimento( Vivace)

A Noite é menina astuta
que brinca vadia
nas ruas do céu.

A Noite é menina ladina
mentira traquina
é rima, ao léu.

A Noite é olfato e ouvido
riso e gemido,
o mais belo vestido
do armário da criação,

e dança ensandecida sobre os astros
girando no mesmo compasso
que gira a minha paixão.

                            IX Movimento(Adagio)

De que modo dormir agora
e deixar que a Noite lá fora
fique esquecida sem uma canção?
Pulverizo palavras sobre a Noite    
como Deus pulverizou-a de estrelas
de tal modo que não matou,
com a Luz,
a Escuridão.

                            X Movimento (Presto)

Na janela bate o Vento Noturno
Vento frio e musical
que canta nas frestas
assustando os tolos
que insistem em ficar solitários,
dormindo com a luz do abajur acesa.

                            XI Movimento(Andante)

O que eu queria na vida
era ser habitante eterno da Noite,
em permanente inspiração e silêncio.

Silenciosa Negritude,
que dá conteúdo aos versos,
que dá substância aos desejos,
consistência às fantasias.

As palavras cobrem os sentidos
como véus , sutis ,
a Noite é o grande Véu
que oculta atividades febris.
Sob o céu de uma bela Noite
as palavras são mais intensas ,
o sentido da Linguagem fica mais claro,
sob o manto da  “Escuridão” imensa.


                            XII Movimento(Andante)

Quantas Noites existem em mim!
Sou feito de estrelas ,às vêzes cadentes,
e minha verdade é escura e oculta.
Meu ser é vasto e imperscrutável.
Só sei de minhas aparências
pontos brilhantes no fundo obscuro de meu Eu.
Sou mistério e frio,
e em certos momentos,
cães anônimos ladram dentro de mim;
em mim , por mim ,passeiam ladrões ,putas e mendigos,
perambulam em minha pele crianças abandonadas ao meu relento,
e em minhas entranhas ,circulam gritos da madrugada.
Minha preguiça de vida é um pouco a preguiça da Noite,
que se atrasa pra amanhecer.
E para mim, as responsabilidades ,
são contrárias à este meu noturno e espontâneo torpor.
Certas vêzes sou romântico,
como a Noite do interior,
ingênua.
Outras vêzes ,fico pensativo,
como a Noite das viagens não muito longas.
Viajar a Noite é tão filosófico
quanto noturno é o filosofar.
Aliás minha razão é minha Noite mais difícil,
mais profunda.

                            XIII Movimento (Alegro)

A Noite me encanta,
Bruxa-Noite ,ausência de luz.
Por cima da minha cama
a noite-bruxa me seduz.

(Eu só existo à Noite.
De dia sou um Holograma,
sem matéria ,sem densidade,
só uma ilusão.)

Aqui deitado ,neste quarto,
fronteio a face da Noite,
contemplo respeitoso este silêncio;
ouço, atento, a imensidão. 

Ela entra no meu coração ,meio sonsa,
e se espalha ,devagar.
Me envolvendo e anestesiando,
a Bruxa-Noite vem me enfeitiçar.


Parado aqui nesta janela acho
que a Noite parece bem mais vasta:
tão imóvel quanto eu, enquanto penso;
tão solene que não passa ,se arrasta.


                            XIV Movimento (Alegretto)

Na Noite do primeiro dia
fez-se amor.
Ainda hoje , à Noite,
faz-se amor.
Ama-se desesperadamente,
à imagem e semelhança da primeira Noite.

Amar à Noite é resgatar origens eróticas,
evocar lembranças exóticas
de gozos primevos,
no seio das trevas iniciais.


                            XV Movimento (Alegro Vivace)

Noite de doces quimeras
Noite de muitas janelas
Noite de tantas mazelas
Noite de Martas , Izabelas.

Noites de carros e motos,
Noite de choro e de colos,
Noite de “Vous” e “Voltos”
Noite de vivos e mortos.

Noite de ares gelados
Noite de amargurados
Noite de livres, aprisionados,
Noite de casais ,de casos.

Noite de muitas lembranças
Noite de doces crianças
Noite de tantas andanças
Noite de Carlas ,Constanças.

Noites de tantas novelas,
nas ruas as sentinelas,
guardas da Noite , Estelas,
Aldas e Márcias e tantas mais.

Noite de “unhs” e de “ais”.


                            XVI Movimento (Presto)

À Noite minha angústia aumenta
Ai que Noite dilatada
lata atada à outra lata,
que se arrastam ,que me arrasa...
Solidão.

                           
                            XVII Movimento (Adagio)

Noites fraternas
de mãos dadas aos longos dos anos
tornam a história  dos homens
algo melhor.

As negras irmãs interligam as épocas.

As Noites dão continuidade à civilização
em ritmo discreto ,procissão,
Guardiães-cósmicas contra a permanente ação,
zelam pelo ritmo, pela intermitente cessação.

Noites unidas(quantas!):protegei-me.

        
                                     





XVIII Movimento

Uma Noite eu sou o Todo
outra Noite eu não sou nada.
Muitas Noites sou sozinho,
outras Noites gargalhada.

Uma Noite tenho força,
outra Noite sou desânimo
Uma Noite sou um deus,
outra Noite ser humano.

Uma Noite tenho idéias
outras Noites tento rir.
Certas Noites faço planos,
outras Noites vou dormir.

E há as Noites em que viajo
por dentro de minhas entranhas;
nesta Noite em que me busco
perco o sono e a esperança.

Houve Noite em que fui Rei,
outras Noites, escudeiro.
Tive Noites de ser bobo,
tive Noites de embusteiro

Me escondi em muitas Noites,
muitas Noites me ocultei;
me tranquei atrás de sombras,
nestas sombras respirei.

Nestas Noites de setembro
não sou rei nem embusteiro
não sou deus ou qualquer coisa,
sou pessoa, quase inteiro.
E saio na chuva à Noite,
pra molhar o meu cabelo.

XIII Movimento(Grand Finale)

Em homenagem ao
Tao Te King

Anexo Hermético

Cada estrela é uma mentira:
sua luz não está mais lá.
A memória é sempre uma inverdade.
Por isso se diz que a Noite é feita de lembranças.


Nós somos todos admiradores do inconsistente
e a luz da verdade nos é quase sempre um fardo.
Daí se diz que repousamos ,à Noite.

O mais perfeito movimento
compõe-se de pequenas variações uniformes
da imobilidade.
Por isso considero o sonho
o mais perfeito dos movimentos.


Há quem diga que a vigília
é a mãe do sofrimento,
pois,
só quando estamos despertos,
as sensações nos são claras;

assim,
só as dores iluminadas pelo sol
(as dores do viver)
trazem-nos informações vitais.
Daí dizerem que a Noite ,é como se morrêssemos(sem sofrer).

Existem Noites religiosas e Noites mundanas
Há quem reze por causa da Escuridão,
mas existem aquêles que vêem nela
motivo para a festa
e para o riso.
(se bem que a alegria e a devocionalidade não se contradigam)
Por isso se diz que a Noite é extremamente humana.

Cada Noite os instantes escapam por nossos dedos.
Os instantes são gotas invisíveis
de um rio de águas escuras que corre mais rápido
à Noite.

É verdade que o tempo ,insidioso,
se infiltra em nós
e nos encharca de idades.

Assim ,o líquido das eras
traça seu rumo, inexorável.

Dizem alguns
que o rio de águas negras
quase estagna
quando sentamos às suas margens.
Por causa dessas coisas
os sábios ensinam
que devemos aprender com a Noite
e mergulharmos neste rio negro
como folhas leves
e confiar que o rio conheça
seu esotérico percurso.

Todos os pescadores das margens
concordam
que a vida das folhas,
no rio,
é mais feliz que a das pedras.


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